Por Arbea

Vende-se ornitorrinco

“Vende-se animal exótico, tão exótico que nem mesmo a força da cadeia evolutiva pôde enquadrá-lo apenas como mamífero ou ovíparo.

Perceba, potencial comprador, o nível de consciência que o seu futuro ornitorrinco vai atribuir à sua própria existência. 

A cada vez que você, enquanto toma um café passado no quente final de tarde, acompanhado por uma bolacha maisena já murcha, encarar, despretensiosamente, os pequenos olhos moldados pelo bico de pato logo abaixo, vai não só estar encarando o seu prezado bicho, mas contemplando a sua própria existência: tão fortuita e tão desgraçada. O que diz esse estranho que, agora, o defronta por simplesmente ser? Talvez a junção tão improvável do conjunto que forma o bicho seja, inicialmente, um arrosto insuportável para você, que pensa ter alguma propriedade especial diante da grandeza esmagadora do universo. Não deixe que o seu ego restrinja o alcance desse primeiro sentimento; não torne sentimento tão nobre, mesquinho. Engrandeça-se por meio dele. Não ceda à cegueira da auto adulação, muito menos se encolha diante da realidade de sua opressiva e tirânica existência: abarque esse novo conhecimento em seu âmago. 

Mas nem só de existencialismo vivem os animais: como você agora sabe, a natureza do ornitorrinco flui entre os reinos selvagens, portanto, caso acolha esse membro em seu núcleo familiar, providencie: uma bacia grande, para que o bicho possa nadar; vermes, afinal, o seu futuro conselheiro os degustará com prazer; um casaquinho de camurça, caso faça muito frio (neste caso, destaca-se a proibição do nado. Você não quer ser responsável por um ornitorrinco que pegou friagem e, depois, ficou com pneumonia). 

Com exceção da ocasião do frio, evite adornos no bicho: ele é naturalista, prefere ficar nu, como você também preferiria, sendo que é um animal de país tropical. Pena que você foi abatido pela condição humana, que, socialmente, exige vestimentas. 

Se você ainda não está convencido, voltemos para a particularidade do ornitorrinco antes de encerrar este anúncio: mesmo que você que leia tragédias gregas, nunca colocará os olhos diante de um oráculo. Até agora. Olhe mais uma vez para o ornitorrinco, agora com grande afinco. Possivelmente, ainda te assusta. Ela já denunciou à sua alma o que há de mais precário em você, e, neste momento, você sente o peso da Fortuna que acabrunha a sua vida. Resista contra o medo. Se você quer elevar a sua existência, não ontologicamente – afinal, já está claro que isso você nunca vai conseguir, é impossível –, mas em um nível mínimo de consciência particular, não conseguirá sem esse ornitorrinco. Assuma controle da vida que despencou do universo, e se manifestou em sua forma: insisto, olhe nos olhos do ornitorrinco. 

Se te parece muito egoísta criar laços infindáveis com este ornitorrinco meramente por causa de sua própria consciência, não o repreendo. É um sentimento digno. Proponho, então, uma mudança de foco. Suponhamos que todo o propósito de vida do ornitorrinco é confrontar conformistas como você, e que, cumprindo esse ofício, o bicho finalmente conseguirá bater as suas patas-barbatana na água com alguma paz de espírito. Talvez seja verdade: quem é você para dizer o que pensa um ornitorrinco? 

Diante dessa nova noção do governo de sua própria vida, resta a escolha final: siga como um covarde, ou compre o ornitorrinco (valor negociável com o anunciante).”