Para dar início à nova programação da página do CAL, deixamos como indicação de leitura o conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis.

Machado de Assis e a escravidão

Quem reproduz o discurso de que Machado de Assis se abstém de assumir posicionamento crítico sobre a questão racial, ou que a escravidão é abordada com ambiguidade nos escritos do autor, é porque desconhece certos contos em que o tema é explorado de forma nua e crua.

Por exemplo, essa notícia da Folha afirma que: “outro ponto polêmico envolve a questão racial. Neto de escravo alforriado, filho de pintor negro, Machado nunca abordou a escravidão de forma muito explícita em seus livros” [1].

Jovens, não caiam nesse papo furado.

Já ouviram falar do conto “Pai contra mãe”? [2] É um texto pesadíssimo, visceral; vocês vão entender como esse adjetivo é exato pra caracterizar o conto.

Atenção: vou dar “spoiler” de toda a narrativa, acredito que saber o que se passa na história não prejudica a experiência de leitura, já que a forma como se conta é o que mais impressiona no texto.

Basicamente é a história de uma família muito pobre em que o pai vive de um trabalho informal e precarizado dos mais desgraçados do século XIX: ele capturava escravos fugidos. Portanto a renda não era fixa, ele só conseguia grana quando era recompensado pela captura dos escravos anunciados nos jornais.

“Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo”, diz Machado.

Sim, os jornais da época da escravidão tinham esse tipo de anúncio, ao lado de qualquer publicidade comum. 

“A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais”. É assim que Machado começa o conto, falando exatamente dos anúncios nos jornais, dos instrumentos de tortura e da ordem socioeconômica para a qual a escravidão era funcional, junto da lei, da propriedade e da pobreza.

“[Pegar escravos] não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem”.

Nesse cenário, o conto apresenta uma família pobre que teve um bebê, mas de tão pobre ela não conseguia cuidar dele. Bem resumidamente: dada essa situação, os pais se viram obrigados a entregar o filho à “roda dos enjeitados” [3], lugar onde os recém-nascidos eram abandonados para instituições religiosas.

No caminho até a Roda, o pai acaba reconhecendo na rua uma escrava fugida. Então ele deixa o bebê com um farmacêutico, persegue a escrava e a captura. Acontece que ela está grávida, e implora para ele não devolvê-la ao senhor, ainda mais porque este era tremendamente violento e a castigaria com açoites.

Mas a resposta do pai de família foi: “você é que tem culpa. Quem manda fazer filhos e fugir depois?”

E não para por aí, a história termina com um tom muito mais pesado: quando a escrava é devolvida ao senhor, este a joga no chão e, na frente dele e daquele que a capturou, ela aborta o bebê: “o fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono”.

Por fim, o pai de família ganha a grana como recompensa, volta ao farmacêutico, retoma o seu bebê e fecha a história batendo no peito e afirmando: pois é mano, “nem todas as crianças vingam”.

Sacaram o título “Pai contra mãe”? Visceral, não? Que ninguém mais fale de Machado de Assis como um escritor que pouco criticou a escravidão.


Referências 
[1] Notícia da Folha: “Ambiguidade racial é um dos fascínios de Machado de Assis, diz professor.”
[2] Conto “Pai contra mãe”, no site da UFMG.
[3] Roda dos enjeitados (ou roda dos expostos).


Resenha escrita por Angelo Ardonde.